A questão de género no Candomblé

Ọ̀ṣẹ, o machado de àngó, tradicionalmente contendo uma figura feminina, representando a forma como os Yorùbá partem de um princípio de complementaridade bio-lógica que produz a vida.

SAUDAMOS ÈṢÙ SENHOR DA COMUNICAÇÃO.

  1. A questão de género tornou-se aspeto importante nas sociedades ocidentais, em razão das lutas sociais pelo reconhecimento das identidades como aspeto essencial dos sujeitos. É produto das mudanças das sociedades ocidentais – depois do coletivo veio o individualismo liberal e agora surge novamente o coletivo, mas por via das comunidades identitárias. De acordo com a teoria crítica o género é uma construção social, resultante da atribuição de papéis a partir de uma bio-lógica de matriz judaico-cristã. Em razão dessas lutas identitárias nas sociedades atuais – que partem do combate ao racismo, homofobia, machismo, entre outros, para uma luta pela diferenciação positiva com base nesses pressupostos, formando comunidades próprias dentro da comunidade geral, o Candomblé vê-se, hoje, numa encruzilhada.
  2. Sabemos que o Candomblé nasce no turbilhão colonial, feito de misturas culturais em tensão, oposição e acomodação. O Candomblé é um produto histórico específico, e não pode ser desligado desse contexto de repressão e racismo, em que o Brasil importava milhões de pessoas escravizadas, de corpos negros desapossados de dignidade. Mas também num contexto de final de escravidão, com uma rápida transição para um sistema menos repressivo, com muitos escravos libertos, com “negros de ganho”, com negros enriquecidos e herdeiros de negócios dos seus antigos senhores, com pessoas brancas participando cada vez do Candomblé. Ou seja, o Candomblé como ele é estruturado, é produto do tardo-colonialismo, do momento de viragem para a República. Isso não significa que existisse uma igualdade racial, pelo contrário, a repressão e o racismo eram marca de água da sociedade brasileira, mas implica que só foi possível por um certo clima de afrouxamento da violência, com uma sociedade afro-baiana com maior margem de mobilidade e florescente economicamente, como eram os líderes e fundadores dos terreiros da época, Casa Branca, Gantois, Alaketu, entre outros.
  3. Quer isto dizer que ao olharmos para o Candomblé precisamos reconhecer que é um espaço de resistência, e enquanto espaço de resistência não deve ser interpretado como espaço de colonialidade de modo determinístico. Exemplo evidente é o erro de catalogar como “colonialidade” e “opressão” o ato de “bater cabeça”, um procedimento ancestral cultural Yorùbá de respeito à senioridade e à realeza. Assim, como espaço de resistência é dever reconhecer o engenho e o empenho em manter e adaptar as tradições, sem um paternalismo ativista.
  4. Ao contrário do que veiculou Ruth Landes em A Cidade das Mulheres, os terreiros de Candomblé antigos sempre tiveram sacerdotes masculinos, tendo sido fundados, em grande parte, por casais heterossexuais. Também ao contrário do que afirmou Ruth Landes, a homossexualidade não era um problema no Candomblé de então, mas antes determinados comportamentos que atentavam contra uma lógica própria de Candomblé, que poderiam ser tanto de pessoas homossexuais como heterossexuais. Mesmo entre os Ogans, cargo masculino por excelência, sempre houve homossexuais.
  5. Isto significa, então, que o Candomblé não é feito de uma distinção de género de base colonial, como agora se quer sustentar, mas antes respeita dois princípios essenciais: a bio-lógica dos corpos em termos de complementaridade e a senioridade como distinção social.
  6. Com efeito, quando uma mulher se casa com um homem, entre os Yorùbá, ela é a “noiva” (ìyàwó) não só do seu companheiro, mas também de todos os seus parentes, particularmente os seus parentes da linhagem masculina. Ao mesmo tempo, cada mulher ou esposa é também um “marido” (ọkọ) para as esposas de todos os seus  consanguíneos  masculinos.  Da  mesma  forma,  o  monarca  é  configurado  como “marido” para os seus subordinados, e configura-se ritualmente como “noiva” ou “esposa” para o Òrìsà dinástico. Isto se encontra com a noção de“possessão” como fabricante de gênero no Candomblé. 
  7. Esta questão da complexidade do género e a sua construção a partir de uma grelha cultural diferente, em que os corpos biológicos se interligam para a produção de vida e ao mesmo tempo desempenham papéis ditos “masculinos” e “femininos” conforme o contexto e, bem assim, é a idade do corpo que determina o prestígio social e familiar, é transposta ao Candomblé.
  8. Em primeiro lugar por via do princípio da senioridade, em que a idade iniciática (e não do corpo, embora tradicionalmente se acompanhem) determina o estatuto social dentro da hierarquia da comunidade-terreiro. Ou seja, o que conta é saber se é uma “mais velha” (ègbón) ou mais nova (ìyàwó ou abian).
  9. Em segundo por via do transe. Aquando do transe ritual, o sujeito incorporado pela divindade não é mais  ele  mesmo,  mas  transforma-se  noutro  –  a  divindade  em  si  mesma.  Decorre  a desconstrução  do  ego  para  se  apresentar  o  alterego  que  é  a  máscara  da  divindade materializada no transe e na vestimenta ritual. Da mesma forma que o rei se torna “noiva” da divindade no espaço Yorùbá, no Candomblé o sujeito em transe se torna na vasilha da divindade, na “noiva” que é possuída, “montada” pela divindade. Dessa forma, homem ou mulher, decorre sempre um desempenho do papel de género feminino. Nesse sentido,  o  sujeito  em  transe  é  feminino  ou  masculino  na  representação  do  género identificado pela divindade – ou seja, em transe a pessoa é Ògún, Òsóòsì, Yèmojá etc., independentemente   de   ser   homem   ou   mulher,   biologicamente   falando   –   e simultaneamente feminino pelo ato de ser “possuído”. Quer isto dizer que a divindade também  desempenha  papéis  de  género  diferenciados,  particularmente  as  divindades concebidas como femininas, uma vez que no ato do transe elas possuem o sujeito, tornando-se emọkọ, ou seja, em “marido” do sujeito-vasilha.
  10. O caso mais complexo, contudo, está relacionado com os Ogans. O Ògá é uma figura masculina (independentemente da sua orientação sexual) que desempenha funções relacionadas à música sacra, sacrifícios rituais, entre outras. Por causa da penetração da teoria crítica da opressão, hoje existe uma forte reivindicação de que mulheres possam executar as tarefas de Ogan, particularmente o toque de atabaque, justificando a interdição como “machismo sistémico de base colonial”. Todavia, a justificação não reside aí. Pelo contrário, a razão pela qual o atabaque é tocado por homens é bio-lógica, ou seja, por causa do seu corpo, do pénis, que permite a fertilização e assim, representa a fertilização simbólica do atabaque, que é um útero cantante.
  11. Análoga questão é a do uso de roupa feminina por corpos masculinos. Embora o Candomblé respeito a forma como cada pessoa se identifica, a verdade é que, como referido, tem uma bio-lógica própria. O pano-da-costa, amarrado ao peito e que cobre até perto dos joelhos, é uma peça de vestuário feminina, que visa cobrir tantos os seios quanto o útero contra energias negativas que possam possuir aquele corpo. Isto significa que a lógica não é a de identificação sexual nem de identificação como de “pessoa de Ayaba”, ou seja, de Òrìsà feminino, mas antes a de proteção espiritual do útero, símbolo essencial na cosmologia Yorùbá.
  12. Entrar para o Candomblé implica aceitar uma cosmovisão própria, uma epistemologia própria, uma ontologia própria, na sua plenitude. Não é possível operar segundo uma lógica de seleção, em que se escolhem os elementos que mais agradam, como a ideia de ancestralidade, de transe, de experiência do corpo, de aceitação da orientação sexual, e se desconsidera a hierarquia, os tabus, as interdições, justificando-as como “opressão” e “colonialidade”. Caso contrário não é possível saudar os Ancestrais, pedir proteção e mostrar respeito, ao mesmo tempo que se lhes mostra que aquilo que nos legaram não serve.
error: Content is protected !!